quarta-feira, outubro 06, 2004

Cultura para quem precisa

E-MAIL ENVIADO POR ORLANDO LOPES À LISTA DE DISCUSSÂO DLIS-ECT

Cultura para quem precisa
Ivana Jinkings*

Uma ameaça ronda o mundo dos livros: a ameaça do obscurantismo. A globalização econômica e financeira amplia a desigualdade entre ricos e pobres e os livros não escapam a essa lógica. Grupos estrangeiros compram editoras brasileiras e se estabelecem com planos avassaladores no mercado nacional. Grandes editoras brasileiras compram menores, acentuando o caráter de monopólio, agravando a tendência à homogeneização na produção de conhecimento e contribuindo para rebaixar o nível das publicações. Enquanto isso, o poder público, que deveria cumprir papel regulador, reproduz as distorções do "mercado" nas aquisições de acervos para bibliotecas e escolas.

Enfrentando contexto de forte concentração no setor, pequenos e médios editores -principais defensores do livro como um bem cultural (e não como simples mercadoria) e os que se dedicam a difundir idéias novas, descobrir autores e formar leitores- vêem-se obrigados a diminuir as tiragens e elevar o preço médio de suas publicações. Resultado, em parte, da política engendrada pelos conglomerados livreiros, que vendem espaços às megaeditoras e ocupam majoritariamente suas prateleiras com best-sellers -no mais das vezes volumes de auto-ajuda, esotéricos ou de mero entretenimento-, impondo o achatamento da oferta das obras ditas de conteúdo, cada dia mais dirigidas a uma reduzida elite intelectual.

A exigência de rentabilidade imediata faz com que a decisão sobre que livros publicar deixe de ser tomada pelos editores e passe às mãos das grandes livrarias (que escolhem as obras pelo seu potencial de venda, ditam o que comprar, de que forma, com que desconto!), ao que se rende parcela significativa de editores, fechando o ciclo do verdadeiro salve-se-quem-puder em que se transformou o mercado editorial.

Não se trata, fique claro, de reivindicar aqui "reserva de mercado" para as pequenas editoras, mas de iniciar a discussão sobre como defender o patrimônio maior da nação, a cultura. Em um país onde apenas 20% dos habitantes lêem livros, não podemos deixar nas mãos do mercado a decisão do que merece ser publicado. Ou aceitar, atônitos, essa máxima de que o mercado se rege por leis naturais, universais, inevitáveis. O dinheiro não pode comandar processo tão importante.
Num país periférico, o editor (não o proprietário de editora, muitas vezes um comerciante como tantos outros, mas o profissional do mundo das letras) não pode abdicar do seu papel de agente cultural. O mesmo se aplica aos livreiros e editores dos suplementos literários, pois o que está em jogo é a identidade, a diversidade e o pluralismo.

Mas tampouco os governantes compreendem seu lugar no mundo da cultura. Numa alarmante mistura entre o público e o mercado, as compras governamentais invariavelmente favorecem as mesmas grandes editoras. Sem um programa claro também nesse campo, o governo do PT mal tomou posse e fez a festa de 14 grupos editoriais, despendendo cerca de R$ 100 milhões, em 2003, na compra de coleções para escolas. Interessante notar que, como o Ministério da Educação é o maior comprador de livros do país (quiçá do mundo), são justamente as editoras de didáticos que despertam primeiro a cobiça das empresas estrangeiras, atraídas pelas benesses desse negócio milionário.

Para completar o triste quadro, temos ainda a mal ajambrada questão da "contrapartida social". A produção cultural no Brasil vive do dinheiro do contribuinte, mas não beneficia a sociedade na mesma proporção. Banqueiros e outros empresários posam de mecenas, lançam mão de conceitos elevados para financiar, às custas do erário, via Lei Rouanet, projetos editoriais luxuosos oferecidos como brindes e depois vendidos a peso de ouro. E, além de beneficiarem quem menos precisa, esses investimentos reforçam as desigualdades regionais, pois quase 90% deles convergem para os Estados do Sudeste, ficando regiões como Norte e Centro-Oeste com ínfimos 0,4% e 2,5% cada uma.

O Ministério da Cultura começa a rever os critérios dessas leis, em muito boa hora. Acredito na capacidade e no direito que o Estado possui de intervir em questões culturais, de chamar à responsabilidade social, fomentar e criar condições para que a produção cultural se dê, transferindo para a área pública o papel assumido pelas empresas e seus gerentes de marketing. Sem se dobrar à gritaria dos que se rebelam contra o "dirigismo cultural" mas nunca se dignaram a discutir o sentido social da literatura, da música, do cinema, do teatro ou das artes plásticas. O que os agenciadores das verbas de incentivo temem no diálogo entre poder público e sociedade é ter de abrir mão de privilégios e práticas que confinam a cultura aos limites medíocres do entretenimento.

Gramsci dizia que todo homem é um intelectual. Independentemente de sua classe social, ele quer entender o mundo que o rodeia, a sociedade e a história que a precede e explica. O livro é uma ferramenta capaz de explicar a história, de transformar o panorama intelectual do país e do mundo. Para que isso seja possível, autores, editores, educadores e livreiros precisam deixar de ficar calados, de cabeça baixa e mãos no bolso; precisam se lançar à missão de fazer do livro um bem a ser democratizado, formando leitores críticos, comprometidos com um futuro mais justo para a humanidade.

*Ivana Jinkings, 43, é editora da Boitempo e uma das fundadoras da Libre (Liga Brasileira de Editores). O texto acima foi publicado pela Folha de São Paulo, em 04 de outubro de 2004.


RESPOSTA DE UM DOS MEMBROS DA LISTA

Orlando:

A impressão que dá quando entramos em livrarias é que muita coisa boa está sendo feita. Há reedições de coisas muito interessantes, resgates de textos praticamente desaparecidos por muito tempo. Por exemplo, um dia desses, entrando numa livraria dessas, encontrei uma reedição do livro "Panamérica", de José Agripino de Paula (com prefácio de Caetano). Achava que somente encontraria esse livro em sebos. Pois não! Há também o que a Internet tem contribuído com seus e-books. Tem muita coisa por aí. O problema é ler a coisa na tela do computador ou imprimir! A discussão tá aí. O texto da folha aponta questões relevantes mostrando que não é somente com reedições 'bordadas', da Ediouro, por exemplo, que vai resolver o problema. O ponto é o mercado, a participação popular, o acesso a essa cultura, o papel do governo, dinheiro, dinheiro, prazer do texto... incentivo.

Valeu pela reflexão,
Geraldo Majella

COMENTÁRIO DE ORLANDO LOPES SOBRE O E-MAIL ENTERIOR

E aê, Geraldo!

Pois é, essas questões de preservação e recuperação de patrimônio cultural estão se tornando cada vez mais urgentes. A questão das edições esgotadas e do acervo de editoras pequenas, de editoras fechadas (o que é que estamos perdendo, do tanto que se deve ter publicado durante o século XX...). Estamos tentando ver se conseguimos formar um grupo pra discutir isso, como e qual o limite de reapropriação que podemos visualizar.

Uma das expectativas do nosso projeto aqui em Guarapacity é criar uma editora (orgulhosamente, a Editora Maratimba) e produzir livros essencialmente em formato digital (por enquanto a opção é usar o PDF) e distribuir via internet textos que não se encontram facilmente. Aqui no Estado, temos pelo menos umas 70, 80 obras que poderiam ser reeditadas, pensando apenas o movimento dos anos 80 pra cá.


Por enquanto, estamos "viajando" na idéia, nas possíbilidades dela. Quem sabe em breve estejamos "desenterrando" a memória do ES?

Abração,

Orlando