quinta-feira, outubro 07, 2004

OS CHOQUES DA CIVILIZAÇÃO

OS CHOQUES DA CIVILIZAÇÃO
Sergio Paulo Rouanet

(Publicado na Folha de São Paulo, em 03 de outubro de 2004)

Nunca poderemos nos esquecer da imagem das mães russas traumatizadas com o assassinato dos seus filhos, em Beslan. Poucos dias depois, a mídia comemorava o terceiro aniversário do atentado contra as torres gêmeas e mostrava a imagem de espectadores e sobreviventes, traumatizados com o horror que se desenrolava diante dos seus olhos. Desde a invasão do Iraque, somos testemunhas do trauma sofrido pelos parentes de crianças mortas. De tão rotineiros, quase não queremos saber dos traumas vividos pelos israelenses com os ataques suicidas dos palestinos e pelos palestinos com os atos de terrorismo de Estado praticados pelo governo Sharon. O denominador comum de todas essas cenas é o trauma. Sua onipresença no mundo contemporâneo não pode deixar a psicanálise indiferente. Afinal, ela tem lidado com o trauma desde que o método catártico foi aplicado por Freud e Breuer para induzir a ab-reação de uma experiência traumática. Mas o aspecto da teoria freudiana do trauma que parece mais relevante hoje é a que destaca o efeito traumático de atos externos de violência. A partir da propensão dos soldados afetados por traumatismos de guerra a voltarem sempre em seus sonhos e pensamentos à situação traumática original, Freud foi levado a postular, em "Além do Princípio do Prazer", a existência de uma compulsão de repetição, aparentemente alheia aos automatismos da realização de desejo. Introduziu na mesma ocasião a idéia da pulsão da morte, que ilustrava exemplarmente a compulsão repetitiva, na medida em que todo ser vivo aspira a regredir ao estado anorgânico original. A neurose de guerra dos veteranos de 1914-1818 seria um caso especial da neurose traumática, na qual o aparecimento dos sintomas resulta de uma situação em que o sujeito se sentiu em risco de vida. Como são exatamente dessa natureza os traumatismos que enfrentamos hoje e como eles estão ficando cada vez mais freqüentes, alguns psicanalistas poderiam arriscar a hipótese de que a neurose traumática venha a ser a neurose do século 21, como a histeria o foi do século 19. Se isso se confirmasse, o papel clínico da psicanálise poderia tornar-se especialmente importante, porque ela substituiria com vantagem as técnicas farmacológicas e behavioristas com que a psiquiatria americana está tratando as vítimas do "post-traumatic stress disturbance", entidade clínica inventada pelo "Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais" (DSMM) para tirar do caminho "velharias" como neurose de guerra e neurose traumática. Mas pergunto-me se a psicanálise não pode prestar-nos outro serviço, além da mera clínica. Não poderia o pensamento de Freud ajudar-nos a compreender os mecanismos subjacentes às ações que estão transformando nosso mundo numa civilização do trauma? A resposta está no último grande livro em que Freud debateu o tema do trauma, "Moisés e o Monoteísmo". Nesse livro, Freud faz uma audaciosa passagem da patologia individual para a social, referindo-se à existência de um trauma coletivo da humanidade. Antes de fazer o que ele chama sua "analogia", recapitula alguns elementos da teoria do trauma. Assim, recorda o fenômeno da latência, intervalo mais ou menos longo entre o momento em que se produziu o trauma e o momento em que aparecem os sintomas. Lembra também que podem existir duas fixações ("Bindungen") ao trauma, uma positiva, durante a qual o sujeito volta continuamente à situação traumática original, e outra negativa, durante a qual ele não quer saber das impressões antigas, dos traumas esquecidos, e tenta evitar tudo o que possa revivê-los.

Vítima expiatória
Vem em seguida a analogia. Freud sugere que a humanidade havia experimentado um trauma original -a culpa resultante do assassinato do pai primitivo; que ela passara por uma latência, durante a qual esse episódio fora esquecido; que o parricídio fora repetido pelo povo judeu, que assassinara Moisés e sofrera o trauma correspondente; que durante sua própria latência os judeus se esqueceram dos ensinamentos transmitidos por Moisés, principalmente os relativos ao monoteísmo, que Moisés trouxera ao Egito; que com o tempo essas memórias foram sendo recuperadas, embora no modo deformado que caracteriza as reminiscências pós-traumáticas do indivíduo; e que uma heresia judaica, o cristianismo, na formulação que lhe foi dada por um judeu romanizado de Tarso, Paulo, representou uma tentativa de aliviar o povo judaico da culpa resultante do assassinato do pai, oferecendo um filho -o filho de Deus- como vítima expiatória.
Gostaria aqui de retomar a idéia do trauma coletivo para levantar a hipótese de que certas ações violentas de nossa época, além de gerarem traumas, fossem por sua vez reações diferidas de traumas anteriores -os produzidos pela modernidade.
Para entendermos essa hipótese, temos que precisar o conceito de modernidade.
Para Max Weber, a modernidade é o desfecho de processos de transformação socioeconômica que se deram na Europa a partir do século 17, tornando-se subseqüentemente universais em sua influência, e que implicaram por um lado a ruptura com relações sociais arcaicas (desculturalização) e, por outro, na racionalização e secularização crescentes do mundo, levando à substituição gradativa da religião pela ciência (dessacralização).
Essa descrição esconde, em sua secura, o extraordinário sofrimento que a modernização impôs a grupos humanos ainda imersos em relações feudais e adeptos de uma visão religiosa do mundo. Se quisermos ter uma idéia desse sofrimento, temos que abandonar a sociologia acadêmica e reler uma das mais conhecidas passagens do "Manifesto Comunista".
Segundo Marx, a modernidade burguesa "destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu os vínculos feudais que ligavam o homem a seus superiores naturais e não deixou nenhum outro nexo entre os homens, a não ser o interesse nu, o pagamento à vista. Ela afogou na água gelada do cálculo egoísta o zelo sagrado dos devotos, o entusiasmo cavalheiresco, a melancolia dos pequenos burgueses... Em lugar da exploração envolta em ilusões religiosas e políticas, ela colocou a exploração aberta, despudorada, direta, brutal. Ela tirou seu halo de todas as atividades que até agora tinham sido contempladas com temor reverencial. Todas as relações fixas, oxidadas, com sua seqüela de idéias e concepções tradicionais, são dissolvidas, e todas as que se formam novamente envelhecem antes que se ossifiquem. Tudo o que é estamental, tudo o que é sólido, se evapora, tudo o que é sagrado é profanado...".
Assim, Marx antecipa as duas principais características da modernização, na descrição de Weber: o processo de desculturalização, pelo qual o indivíduo se "libera" das "relações feudais, patriarcais, idílicas", e o processo de dessacralização, pelo qual a razão toma o lugar antes ocupado pela fé, pondo o "cálculo gelado" em lugar das "ilusões religiosas". Mas, diferentemente de Weber, Marx não evita os julgamentos de valor e é sensível ao sofrimento acarretado pela dissolução dos estamentos e pela profanação do sagrado.
Se acrescentarmos à perspectiva marxista e à weberiana uma perspectiva psicanalítica, creio que estaríamos justificados em substituir a palavra "sofrimento" por um termo mais técnico: trauma. Diríamos então que a modernidade infligiu a milhões de seres humanos dois grande traumas, o primeiro ao arrancá-los de suas culturas tradicionais e, o segundo, ao impor-lhes uma secularização forçada.
Enquanto homem do Iluminismo, Freud aprovava o principal efeito do processo de desculturalização: a produção da individualidade autônoma, livre das malhas do clã, da tribo, do estamento. Mas, mesmo endossando o julgamento de Freud, não podemos ignorar a importância para o homem dos vínculos comunitários e a tragédia que representou para ele a dissolução desses vínculos. Essa tragédia deve ter produzido um verdadeiro choque histórico: um trauma. Freud talvez dissesse que esse trauma teria sido sobredeterminado pela recordação nebulosa de um trauma semelhante, na origem dos tempos: a culpa sentida pelos filhos quando abandonaram a horda primitiva, depois do assassinato do pai. Nos dois casos, era a ruptura de uma solidariedade comunitária, de uma relação filial baseada na "patria potestas" do senhor da horda ou do feudo. Tudo se passa como se o trânsito da psicologia de massas para a psicologia individual fosse sempre um trânsito culpado. No que diz respeito ao processo de dessacralização, sabemos como Freud valorizava a ciência, chegando ao ponto de divinizá-la, à semelhança de Hérault de Séchelles, durante a Revolução Francesa: "Nosso deus Logos". E sabemos que para ele a ciência se opunha à religião, que ele designa como "ilusão", utilizando a mesma terminologia de Marx: ilusão religiosa. O papel histórico da razão moderna era o de triunfar sobre o obscurantismo religioso.

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Como no passado, o homem se vê encurralado por forças desmedidas, que ameaçam as hostes do bem do mesmo modo que antes
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Ao mesmo tempo, Freud sabia que essa tarefa não era fácil, porque a ciência privava o homem dos consolos do irracional. A religião, pelo contrário, liberava o homem da difícil tarefa do pensamento, ao proporcionar explicações pré-fabricadas para todos os fatos e ao desobrigá-lo de submeter essas explicações ao controle da experiência. Além disso, a religião é uma forma fantasmática de proteger o indivíduo dos perigos da natureza, da implacabilidade da morte, dos sofrimentos impostos pela vida social. Ela minora o infortúnio terrestre e promete no Paraíso uma beatitude compensatória. Daí o choque produzido pela modernidade, que confrontava o homem com um mundo secularizado. De novo, pode ter sido um trauma sobredeterminado, na medida em que o pai primitivo foi o protótipo de Deus, esse mesmo Deus que estava morrendo uma segunda vez. Vimos que na neurose individual coexistem uma fixação positiva pelo trauma, pela qual a situação traumática é rememorada e trabalhada, e a fixação negativa, que foge da lembrança da situação traumática. O mesmo, "mutatis mutandis", ocorre na neurose traumática coletiva. Os dois traumas da modernidade são objetos de memórias que evocam tanto a situação de violência original (fixação positiva) quanto um passado mítico anterior ao trauma (fixação negativa). Essa dupla fixação está presente nas principais tendências antimodernas, muitas das quais assumem formas violentas. A resistência à desculturalização se manifesta como reivindicação de identidades culturais agredidas, como vontade de reterritorialização num mundo em contínuo processo de relativização de todos os espaços locais e nacionais. Essa resistência assume a forma de uma fantasia sadomasoquista que reencena continuamente o episódio da agressão cultural (fixação positiva no trauma) e a de uma fantasia de realização de desejo que foge do trauma idealizando uma cultura pré-traumática que provavelmente nunca existiu. A política das identidades, alguns movimentos sociais, certas vertentes do movimento antiglobalização representam a condensação dessas duas fantasias, dessas duas maneiras de contestar a modernidade, dessas duas maneiras de recapturar o passado.

Humilhações
Do mesmo modo, a resistência à secularização se manifesta como reatualização permanente dos episódios de violência durante os quais a religião foi agredida pelo choque traumático (fixação positiva) e como regressão a um passado intacto em que a religião reinava sem partilha e a autoridade das Escrituras não era contestada (fixação negativa).
Podemos começar a entender esse fenômeno se partirmos da famosa passagem de Freud sobre as três humilhações que feriram o amor próprio humano: a humilhação cosmológica, infligida por Copérnico quando provou que a Terra não era o centro do Universo; a humilhação biológica, imposta por Darwin, cuja doutrina evolucionista reinseriu o homem no restante do mundo animal; e a humilhação psíquica, sofrida pelo homem quando a psicanálise revelou que o ego estava sujeito a determinismos internos cuja verdadeira natureza permanecia inconsciente.
Freud usa a expressão "Kränkung", humilhação, e não trauma, mas o próprio Freud deixou claro, em "Estudos sobre a Histeria", que a "humilhação" era uma variedade de "trauma psíquico". Por isso, creio que alguns tradutores acertaram em cheio quando traduziram "Kränkung" por ferida, ferida narcísica, com o que se aproximaram do conceito de trauma, que, afinal, quer dizer ferida, em grego. Mas o que, exatamente, foi ferido em cada um desses traumas? Freud diz que foi o amor próprio humano, a "Eigenliebe". Mas podemos ser mais específicos. Além desse denominador comum, existe claramente outro. O que foi lesado, nos três casos, foi a visão religiosa do mundo. O que esses traumas fizeram foi demolir a autoridade das Escrituras. O trauma cosmológico contestou a versão bíblica de que o Sol girava em torno da Terra; o trauma biológico desafiou o relato bíblico sobre a criação do homem por Deus e o estatuto privilegiado que lhe foi concedido no mundo animal; e o trauma psíquico transformou a religião numa neurose obsessiva da humanidade e fez de Deus a mera projeção supra-sensível da figura paterna. Mas o que ganhamos com a transformação de "Kränkung" em trauma? Simplesmente isso: ela nos permite compreender melhor a violenta contestação, hoje em dia, de Copérnico, Darwin e Freud e a ressurreição correspondente, por motivos religiosos, daquelas mesmíssimas concepções do mundo -o geocentrismo, o criacionismo e a psicologia não-analítica-, que aparentemente haviam sido destronadas por nossos três traumas. Quanto a Copérnico, há hoje um debate acalorado em círculos evangélicos americanos sobre a validade ou não da teoria heliocêntrica. Há toda uma corrente que sustenta com argumentos científicos que a versão bíblica -a geocêntrica- é a única que corresponde aos fatos. Assim, uma experiência realizada em 1925 teria demonstrado não haver nenhuma prova de que a Terra se movesse em torno do Sol. Mas a essência da argumentação é teológica. Afirma-se que o heliocentrismo é refutado pela Bíblia. Assim, o Gênese refere-se várias vezes ao nascer e ao pôr do Sol, mas nunca a um movimento da Terra em redor do Sol. Além disso, a Bíblia não se refere à criação do Sol antes do quarto dia, ao passo que a Terra foi criada desde o primeiro dia. Como pode a Terra, então, ter girado durante três dias em torno de um Sol que ainda não existia?

Ensino ilegal
Como o próprio Freud observou, a doutrina evolucionista foi objeto de uma enorme resistência desde a publicação da "Origem das Espécies". Depois da Primeira Guerra, vários Estados norte-americanos promulgaram leis considerando ilegal o ensino do darwinismo nas escolas, por contrariar a versão bíblica da criação do homem. Foi quando um jovem professor secundário de Tennessee decidiu desafiar a lei, confessando haver ensinado o evolucionismo a seus alunos. Podia-se acreditar que a absolvição do rapaz, num julgamento rumoroso que ridicularizou o campo fundamentalista diante da nação inteira, levaria as legiões de Deus a depor as armas. Mas nos últimos anos os fundamentalistas voltaram à cena. Em 1999, a Junta de Educação do Estado de Kansas votou uma recomendação que na prática encorajava as escolas a retirarem dos currículos a evolução. Há dois anos, o Estado de Ohio decidiu adotar um currículo que inclui a evolução, mas inclui também as teorias que a criticam, o que equivale a dar o mesmo valor a Darwin e ao criacionismo bíblico. Não podendo mais dizer que o país está ameaçado pelo comunismo, a direita religiosa americana descobriu que a verdadeira ameaça, agora, é o darwinismo. Chegou-me às mãos recentemente um artigo intitulado "Propaganda Evolucionista", cujo autor enxerga em toda parte indícios de uma vasta conspiração darwinista para intoxicar as consciências cristãs. Uma das provas mais sinistras desse complô anticristão é que o sistema operacional do último computador Macintosh se chama Darwin. Como o ridículo não tem fronteiras, o exemplo americano está frutificando no Brasil. Em 2004, o governo do Estado do Rio de Janeiro, que em 2002 havia sancionado uma lei estabelecendo o ensino confessional nas escolas públicas estaduais, decidiu que a doutrina criacionista seria ensinada neste ano nas aulas de religião. É uma primeira vitória do fundamentalismo antidarwinista no Estado em cuja capital Darwin aportou, em 1832, a bordo do "Beagle". Finalmente, não é demais recordar a virulência dos ataques dirigidos à psicanálise nos EUA. Em seus aspectos mais gerais, esses ataques estão esplendidamente descritos no livro de Elizabeth Roudinesco, "Por Que a Psicanálise?" [ed. Jorge Zahar]. Uma das frentes em que se dá a luta contra Freud é a religiosa.

Catecismo
Os grupos fundamentalistas cristãos afirmam, e não deixam de ter razão, que a visão bíblica do homem é incompatível com a antropologia freudiana. A Associação Evangélica Fundamental está distribuindo pela internet uma espécie de catecismo, contrapondo os ensinamentos da Bíblia e os da psicologia, incluída a psicanálise, e concluindo que a psicanálise foi "inspirada pelo homem pecador". Outra publicação reforça essa interpretação, dizendo que a "psicologia freudiana zomba dos ensinamentos morais dos pais e perturba a consciência dos que a escutam. Isso remove as restrições ao pecado". Em todos esses exemplos, tudo se passa como se a reação ao trauma provocado pelo secularismo moderno estivesse pressionando o homem em duas direções opostas. Por um lado, impulsionado pela compulsão de repetição, a serviço da pulsão da morte, o homem revive a situação primitiva de violência, vendo-se como protagonista de uma luta cósmica entre o bem e o mal, transfiguração alegórica do conflito que no passado produziu o trauma. Como no passado, ele se vê encurralado por forças desmedidas, que ameaçam as hostes do bem do mesmo modo que antes. A compulsão de repetição faz com que ele enfrente os mesmos inimigos, usando exatamente os mesmos argumentos religiosos que no passado haviam sido utilizados pelos adversários de Copérnico, de Darwin e de Freud. Por outro lado, impulsionado pelo princípio do prazer, o homem cria utopias retrospectivas, imagens de um paraíso perdido, anterior ao trauma, em que não havia cisão entre a religião e a ciência, porque toda ciência era garantida pela autoridade da religião. Muitos desses fenômenos são ainda marginais. Pode-se alegar que os anticopernicanos e os antidarwinistas pertencem a grupos minoritários e que nem todos os antifreudianos são lunáticos. Mas creio que esses fatos têm valor de índice e apontam para uma configuração mais geral: a volta da religião.

Três fundamentalismos
É algo que está diante dos nossos olhos e se manifesta mais dramaticamente nos três fundamentalismos que hoje em dia estão ensangüentando o planeta. Penso no fundamentalismo islâmico, que prega uma "jihad" [guerra santa] contra os infiéis e quer uma reforma das leis e da sociedade segundo os preceitos da "charia", do direito corânico; no fundamentalismo judaico, que em algumas de suas vertentes pratica atos de terrorismo e de assassinato político e que se baseia nas promessas feitas por Deus aos patriarcas para recusar qualquer concessão territorial aos árabes; e no fundamentalismo cristão, hoje representado pelos fanáticos religiosos que tomaram o poder na Casa Branca e que induz o presidente da nação mais poderosa do mundo a liderar uma cruzada contra o "eixo do mal" [representado por Irã, Coréia do Norte e o antigo regime iraquiano, agora deposto]. Em todos esses casos, condensam-se a fixação positiva pelo trauma (reencenação da guerra cósmica entre o bem e o mal, durante a qual, no passado, as forças do bem sofreram uma derrota traumática, que agora será vingada) e a fixação negativa pelo trauma, que se manifesta pela denegação do trauma e pela criação de um passado idílico anterior ao trauma (ordem social restaurada, regida seja pelo Corão, seja pela Torá, seja pelo Antigo e Novo testamentos).
Em conclusão, creio que há boas razões para ver em certos movimentos violentos de nossa época uma reação a choques produzidos pela modernidade. O trauma pode ser recente, como no caso dos países islâmicos que foram afetados pelas pressões modernizadoras há no máximo uma ou duas gerações, ou mais antigo, como no caso da Europa ou dos EUA, mas em todos os casos esses movimentos visam seja a reculturalização, seja a ressacralização, sejam as duas coisas ao mesmo tempo, como acontece com os dois extremismos que atualmente incendeiam o Oriente Médio.
Resta responder a uma última pergunta: por que esses movimentos estão se dando agora? Em termos freudianos, os sintomas patológicos surgem depois de finda a latência, muitas vezes em conseqüência de um acontecimento que tenha uma relação associativa com o fato traumático. Em nosso caso, creio que os acontecimentos "deflagradores" foram a globalização, que, com sua tendência a destruir todas as especificidades culturais, reativou a memória da desculturalização introduzida pela modernidade, e o fim da Guerra Fria, que, culminando na vitória avassaladora do capitalismo, com seus valores materialistas, reativou a memória da dessacralização moderna. A eliminação dessas situações de violência extrema exige medidas de caráter social e político. Mas a psicanálise também tem sua contribuição a dar.
A natureza dessa contribuição já começou a ser debatida no Congresso de Psicopatologia Fundamental, realizado no Rio, em setembro, inteiramente dedicado ao tema do trauma, e certamente voltará a ser debatida em São Paulo, no ano que vem, pelo Congresso Internacional de Psicanálise, cujo foco será também o trauma.



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Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de "Os Dez Amigos de Freud" (dois volumes, Companhia das Letras). Escreve regularmente na seção "Brasil 505 d.C.".

quarta-feira, outubro 06, 2004

Cultura para quem precisa

E-MAIL ENVIADO POR ORLANDO LOPES À LISTA DE DISCUSSÂO DLIS-ECT

Cultura para quem precisa
Ivana Jinkings*

Uma ameaça ronda o mundo dos livros: a ameaça do obscurantismo. A globalização econômica e financeira amplia a desigualdade entre ricos e pobres e os livros não escapam a essa lógica. Grupos estrangeiros compram editoras brasileiras e se estabelecem com planos avassaladores no mercado nacional. Grandes editoras brasileiras compram menores, acentuando o caráter de monopólio, agravando a tendência à homogeneização na produção de conhecimento e contribuindo para rebaixar o nível das publicações. Enquanto isso, o poder público, que deveria cumprir papel regulador, reproduz as distorções do "mercado" nas aquisições de acervos para bibliotecas e escolas.

Enfrentando contexto de forte concentração no setor, pequenos e médios editores -principais defensores do livro como um bem cultural (e não como simples mercadoria) e os que se dedicam a difundir idéias novas, descobrir autores e formar leitores- vêem-se obrigados a diminuir as tiragens e elevar o preço médio de suas publicações. Resultado, em parte, da política engendrada pelos conglomerados livreiros, que vendem espaços às megaeditoras e ocupam majoritariamente suas prateleiras com best-sellers -no mais das vezes volumes de auto-ajuda, esotéricos ou de mero entretenimento-, impondo o achatamento da oferta das obras ditas de conteúdo, cada dia mais dirigidas a uma reduzida elite intelectual.

A exigência de rentabilidade imediata faz com que a decisão sobre que livros publicar deixe de ser tomada pelos editores e passe às mãos das grandes livrarias (que escolhem as obras pelo seu potencial de venda, ditam o que comprar, de que forma, com que desconto!), ao que se rende parcela significativa de editores, fechando o ciclo do verdadeiro salve-se-quem-puder em que se transformou o mercado editorial.

Não se trata, fique claro, de reivindicar aqui "reserva de mercado" para as pequenas editoras, mas de iniciar a discussão sobre como defender o patrimônio maior da nação, a cultura. Em um país onde apenas 20% dos habitantes lêem livros, não podemos deixar nas mãos do mercado a decisão do que merece ser publicado. Ou aceitar, atônitos, essa máxima de que o mercado se rege por leis naturais, universais, inevitáveis. O dinheiro não pode comandar processo tão importante.
Num país periférico, o editor (não o proprietário de editora, muitas vezes um comerciante como tantos outros, mas o profissional do mundo das letras) não pode abdicar do seu papel de agente cultural. O mesmo se aplica aos livreiros e editores dos suplementos literários, pois o que está em jogo é a identidade, a diversidade e o pluralismo.

Mas tampouco os governantes compreendem seu lugar no mundo da cultura. Numa alarmante mistura entre o público e o mercado, as compras governamentais invariavelmente favorecem as mesmas grandes editoras. Sem um programa claro também nesse campo, o governo do PT mal tomou posse e fez a festa de 14 grupos editoriais, despendendo cerca de R$ 100 milhões, em 2003, na compra de coleções para escolas. Interessante notar que, como o Ministério da Educação é o maior comprador de livros do país (quiçá do mundo), são justamente as editoras de didáticos que despertam primeiro a cobiça das empresas estrangeiras, atraídas pelas benesses desse negócio milionário.

Para completar o triste quadro, temos ainda a mal ajambrada questão da "contrapartida social". A produção cultural no Brasil vive do dinheiro do contribuinte, mas não beneficia a sociedade na mesma proporção. Banqueiros e outros empresários posam de mecenas, lançam mão de conceitos elevados para financiar, às custas do erário, via Lei Rouanet, projetos editoriais luxuosos oferecidos como brindes e depois vendidos a peso de ouro. E, além de beneficiarem quem menos precisa, esses investimentos reforçam as desigualdades regionais, pois quase 90% deles convergem para os Estados do Sudeste, ficando regiões como Norte e Centro-Oeste com ínfimos 0,4% e 2,5% cada uma.

O Ministério da Cultura começa a rever os critérios dessas leis, em muito boa hora. Acredito na capacidade e no direito que o Estado possui de intervir em questões culturais, de chamar à responsabilidade social, fomentar e criar condições para que a produção cultural se dê, transferindo para a área pública o papel assumido pelas empresas e seus gerentes de marketing. Sem se dobrar à gritaria dos que se rebelam contra o "dirigismo cultural" mas nunca se dignaram a discutir o sentido social da literatura, da música, do cinema, do teatro ou das artes plásticas. O que os agenciadores das verbas de incentivo temem no diálogo entre poder público e sociedade é ter de abrir mão de privilégios e práticas que confinam a cultura aos limites medíocres do entretenimento.

Gramsci dizia que todo homem é um intelectual. Independentemente de sua classe social, ele quer entender o mundo que o rodeia, a sociedade e a história que a precede e explica. O livro é uma ferramenta capaz de explicar a história, de transformar o panorama intelectual do país e do mundo. Para que isso seja possível, autores, editores, educadores e livreiros precisam deixar de ficar calados, de cabeça baixa e mãos no bolso; precisam se lançar à missão de fazer do livro um bem a ser democratizado, formando leitores críticos, comprometidos com um futuro mais justo para a humanidade.

*Ivana Jinkings, 43, é editora da Boitempo e uma das fundadoras da Libre (Liga Brasileira de Editores). O texto acima foi publicado pela Folha de São Paulo, em 04 de outubro de 2004.


RESPOSTA DE UM DOS MEMBROS DA LISTA

Orlando:

A impressão que dá quando entramos em livrarias é que muita coisa boa está sendo feita. Há reedições de coisas muito interessantes, resgates de textos praticamente desaparecidos por muito tempo. Por exemplo, um dia desses, entrando numa livraria dessas, encontrei uma reedição do livro "Panamérica", de José Agripino de Paula (com prefácio de Caetano). Achava que somente encontraria esse livro em sebos. Pois não! Há também o que a Internet tem contribuído com seus e-books. Tem muita coisa por aí. O problema é ler a coisa na tela do computador ou imprimir! A discussão tá aí. O texto da folha aponta questões relevantes mostrando que não é somente com reedições 'bordadas', da Ediouro, por exemplo, que vai resolver o problema. O ponto é o mercado, a participação popular, o acesso a essa cultura, o papel do governo, dinheiro, dinheiro, prazer do texto... incentivo.

Valeu pela reflexão,
Geraldo Majella

COMENTÁRIO DE ORLANDO LOPES SOBRE O E-MAIL ENTERIOR

E aê, Geraldo!

Pois é, essas questões de preservação e recuperação de patrimônio cultural estão se tornando cada vez mais urgentes. A questão das edições esgotadas e do acervo de editoras pequenas, de editoras fechadas (o que é que estamos perdendo, do tanto que se deve ter publicado durante o século XX...). Estamos tentando ver se conseguimos formar um grupo pra discutir isso, como e qual o limite de reapropriação que podemos visualizar.

Uma das expectativas do nosso projeto aqui em Guarapacity é criar uma editora (orgulhosamente, a Editora Maratimba) e produzir livros essencialmente em formato digital (por enquanto a opção é usar o PDF) e distribuir via internet textos que não se encontram facilmente. Aqui no Estado, temos pelo menos umas 70, 80 obras que poderiam ser reeditadas, pensando apenas o movimento dos anos 80 pra cá.


Por enquanto, estamos "viajando" na idéia, nas possíbilidades dela. Quem sabe em breve estejamos "desenterrando" a memória do ES?

Abração,

Orlando